Um estudo feito
pela Fundação Oswaldo Cruz concluiu que, nas cidades brasileiras com menos de
30 mil habitantes, é mais frequente a internação de pessoas por causa de males
preveníveis na atenção básica
RAFAEL CISCATI / ÉPOCA
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Nos municípios com menos de 30 mil habitantes, são mais frequentes as internações por condições sensíveis à atenção básica (Foto: FreeImages) |
As
cidades pequenas são maioria no Brasil. Embora o grosso da população do país
viva em municípios com mais de 1 milhão de habitantes, são as cidades com menos
de 20 mil pessoas que predominam numericamente: de acordo com o IBGE, elas
respondem por mais de 70% do total de municípios brasileiros. São cidades
muitas vezes distantes dos grandes centros urbanos, que arrecadam poucos
impostos e onde os serviços de atenção básica à saúde falham. De acordo com um
estudo conduzido por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de
Pernambuco, as cidades pequenas, com menos de 30 mil habitantes, são as que mais frequentemente internam
pacientes por causa do agravamento de problemas que poderiam ser evitados, caso a população tivesse acesso a bons serviços de
atenção primária à saúde.
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Os serviços de atenção primária, ou atenção básica, são aqueles que, idealmente,
acompanham a população quando sadia, de modo a evitar doenças. E encaminham o
doente a serviços de saúde mais complexos – a um médico especialista, por
exemplo – no caso de problemas mais graves. No Brasil, eles são comumente
oferecidos em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e por equipes do Programa Saúde
da Família. A atenção primária é importante porque, quando prestada de formas
adequadas, pode impedir o surgimento de quadros sérios – pode evitar, por
exemplo, que uma hipertensão descontrolada culmine em um infarto. A pesquisa da
Fiocruz mostra que, historicamente, o Brasil encontrou dificuldades em
estruturá-la nos municípios menos populosos.
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Os pesquisadores queriam entender como aconteceu o
crescimento no número de equipes do Programa Saúde da Família, no país todo, desde 1998. O dado importa porque o
programa, criado em 1994, é a principal estratégia do governo para levar a atenção primária à população. Os números mostram que, nos últimos 19 anos, as equipes
cresceram e se interiorizaram – a ponto de cobrir, hoje, 64% da população
brasileira, contra menos de 7% em 1998.
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Mas os números também mostram que essa expansão não bastou
para eliminar desigualdades no acesso à saúde entre grandes e pequenos
municípios. Nas cidades com menos de 30 mil habitantes, é maior a frequência
com que as pessoas têm de ser internadas por causa de complicações evitáveis
pela atenção primária: em 2015, foram 159 casos a cada 10 mil
habitantes. Mais que o dobro da frequência
verificada em cidades com população superior a 1 milhão. “Fica claro que,
quanto mais populoso o município, maiores são as oportunidades e melhores são
as condições sociais”, diz o professor Antônio Cruz Mendes, um dos autores do estudo. “E isso interfere na saúde das
populações.” As explicações para essa discrepância entre grandes e pequenos
envolvem problemas de financiamento e de
gestão do sistema de saúde –
comuns a municípios de todos os portes, mas que tendem a afetar mais gravemente
as cidades menores.
Quando o Sistema Único de Saúde (SUS) começou a ser implantado no Brasil, em finais dos anos
1980, decidiu-se que o foco deveria ser a atenção primária. Foi uma decisão
também tomada por diversos países que, ao longo do século XX, criaram sistemas de saúde universais, como o Reino Unido: “Nesses lugares, a atenção primária
consegue resolver entre 80% e 90% dos problemas de saúde da população”, diz Nelson dos Santos, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, que não
participou da pesquisa. O volume de recursos aplicados pelo Brasil, no entanto,
foi bem menor que o destinado por esses países a seus sistemas de saúde.
Segundo os dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), o setor público no Brasil destinou o equivalente a 3,8%
do PIB à saúde em 2014. É bem menos do que os britânicos fizeram no mesmo ano:
7,8% do PIB. E menos, até, do que o aplicado pelo setor público em outros
países da América Latina. Na Colômbia, por exemplo, o governo aplicou 5,4%. No
Brasil, falta financiamento federal. O financiamento e a organização do sistema
de saúde são responsabilidades compartilhadas pela União, pelos estados e
municípios. O que os números mostram, no entanto, é que, aos poucos, o governo
federal pisou no freio: em 1991, ele respondia por 73% do investimento público
em saúde no país e os municípios por 12%. Com o passar dos anos, a população
aumentou e envelheceu, os gastos aumentaram, mas o investimento federal não
cresceu no mesmo ritmo. Em 2015, a União respondeu por 43% do investimento
público em saúde e os municípios por 31%. “A União vem diminuindo
progressivamente sua responsabilidade pelo financiamento do SUS e deixando uma
carga excessiva sobre os municípios”, diz a professora Ligia Giovanella, da Fiocruz no Rio de Janeiro (que também não participou do
trabalho feito pelos pesquisadores de Pernambuco).
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A legislação determina que os municípios destinem à saúde,
no mínimo, 15% do que arrecadam. Na prática, eles aplicam bem mais – em média 23%. Essa ausência do governo federal pesa mais sobre os
menores. Em regra, eles arrecadam menos impostos. Ainda que destinem parcela significativa de suas
receitas para financiar a saúde, o montante corre o risco de ser insuficiente.
No caso dos municípios pequenos, ter pouco dinheiro interfere diretamente na capacidade de contratar e de manter profissionais de saúde. Segundo o trabalho da Fiocruz, esses foram dois dos
maiores entraves, ao longo dos anos, para a expansão da atenção básica no
país.
A criação do Mais Médicos, em 2013, foi uma tentativa do
governo federal de amenizar o problema. O programa previa a criação de novas
vagas em faculdades de medicina em várias regiões do país e a contratação de
médicos em caráter emergencial – cujos honorários seriam pagos pelo governo
federal, aliviando os orçamentos municipais. O programa trouxe resultados
positivos. Entre 1999 e 2013, segundo o levantamento, o número de equipes de
Saúde da Família cresceu ao ritmo de 180 por mês. Desde agosto de 2013, quando
foi criado o Mais Médicos, esse número saltou para 228 por mês. Hoje, o
programa responde por 40% das equipes de Saúde da Família em atividade no
Brasil. “Os 18 mil médicos do programa estão trabalhando em cidades onde o prefeito
não conseguia bancar os custos desse profissional”, diz Mário Scheffer, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. Ele, no
entanto, não resolve toda a questão. Além do salário, outros fatores pesam na
decisão do profissional de permanecer ou não trabalhando em uma cidade pequena:
a diversidade de opções de lazer, a qualidade das escolas para os filhos e
também o acesso a cursos de formação continuada. “A dificuldade de manter
equipes na atenção básica, nos municípios menores e em áreas desassistidas, é
um problema mundial”, diz Scheffer. “A solução financeira é um primeiro passo. Mas é preciso pensar num conjunto de soluções. Como a
criação de um plano de carreira nacional – que preveja a promoção desse
profissional a municípios maiores.”
Embora os problemas persistam, o levantamento da Fiocruz
mostra que o Brasil progrediu. Entre 2009 e 2015, o número de internações por
causas sensíveis à atenção básica caiu em municípios de todos os portes
populacionais. Naqueles com menos de 30 mil
habitantes, o número de internações caiu 17%: “Desses municípios, 154 nem
sequer tinham médicos em 2009”, diz Antônio Cruz Mendes, o autor do estudo. “Há
ainda uma grande dívida social, que levará tempo para ser superada.”
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